Os Holandeses no Ceará
Paulo Sérgio Barros·
Para compreendermos o sentido da ocupação holandesa no Ceará
no século XVII, é preciso que voltemos no tempo para sabermos um pouco da
história da Europa, especificamente de Portugal e Espanha.
Em 1568, dom Sebastião assumiu o trono
português aos 14 anos de idade. Dez anos depois, ainda solteiro, morreu na
batalha de Alcácer Quibir, contra os
muçulmanos no norte da África. Como não deixou herdeiros, quem assumiu o trono foi seu
tio-avô, o cardeal dom Henrique, que morreu pouco depois, em 1580. Sem
herdeiros para o trono português, o rei da Espanha, Felipe II reivindicou para
si o trono português argumentando que era casado com dona Maria, filha de Dom
João III de Portugal, avô de dom Sebastião.
Com
o apoio da nobreza, do alto clero e de parte da burguesia portuguesa, o
exército espanhol invadiu Portugal e colocou no trono o novo rei. Em 1581, pelo
Tratado de Tomar instaurava-se União
Ibérica, governada por uma monarquia dual que reinaria sobre os dois países até
1640.
A
União Ibérica teve repercussões importantes para o Brasil, colônia portuguesa
na América. Uma delas foram as hostilizações que Portugal, agora sob domínio
espanhol, passou a sofrer das potências européias inimigas da Espanha,
notadamente a Holanda com quem a Espanha estava em guerra.
Os
holandeses invadiram e ocuparam as regiões brasileiras produtoras de açúcar
durante 24 anos (1630-1654), pois pretendiam continuar dominando o comércio
mundial desse produto, domínio que a Espanha também pretendia. As primeiras
tentativas holandesas foram na Bahia em 1624 e 1625. Expulsos da Bahia,
voltaram sua atenção para Pernambuco, a maior e mais rica região produtora de
açúcar do mundo. Estabelecendo-se em Pernambuco, os holandeses conquistaram
vasta área que hoje corresponde parte dos estados de Sergipe, Alagoas,
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, parte do Litoral do Ceará e São Luís
do Maranhão.
Os
senhores de engenho do Nordeste não reagiram à ocupação holandesa. Para eles o
que interessava era ganhar dinheiro com a venda do açúcar, quer fosse para
portugueses ou holandeses. Além do mais os holandeses fizeram empréstimos aos
senhores de engenho para que eles reconstruíssem as propriedades destruídas
pela guerra. Em 1637, Johann Mauritius van Nassau (Maurício de Nassau) foi
nomeado governador das terras holandesas no Brasil. O Novo governador, além de
manter a aliança com os senhores de engenho, trouxe na sua comitiva 46 artistas,
cientistas, artífices e sábios para estudar e retratar a natureza do Brasil.
Outro aspecto que marcou a administração de Nassau foi o embelezamento do
Recife, a capital do Brasil holandês, através da construção de pontes e de
obras sanitárias.
Os holandeses chegam ao Ceará
Os holandeses fizeram duas investidas no
sentido de dominar o Ceará. A primeira foi em 1637, comandada por Jorris
Garstman que dominou a pequena guarnição portuguesa do Fortim de São Sebastião,
tendo o apoio do chefe indígena Algodão. Nesse primeiro momento os holandeses
visavam a conquista da ilha de São Luís do Maranhão e a conquista do Ceará
serviria como um ponto de apoio para um futuro ataque ao Maranhão. Contudo, em
primeiro lugar, eles objetivavam explorar as salinas do litoral cearense, para
o qual usaram a mão –de obra indígena.
A aliança do chefe indígena com os holandeses
não durou muito. A violação dos acordos, o uso da violência e exploração da
força de trabalho, pôs os índios em estado de tensão, levando-os a destruir as fortificações
construídas e assassinar Moris de Junge, o comandante que havia ficado no
Ceará, e toda a sua guarnição no forte se São Sebastião, em 1644, o qual havia
sido edificado na Barra do Ceará, em 1612, pelo primeiro colonizador português
do Ceará, Martim Soares Moreno.
Até 1649 nem portugueses nem holandeses
dominaram o Ceará. Neste ano Matias Beck retorna à região e restabelece o
domínio holandês até 1654 quando foram expulsos do Brasil.
A vinda de Matias
Beck era com o objetivo de procurar supostas minas de prata, talvez ouro, que
seriam de grande importância para sanear as finanças do governo holandês no
Brasil.
Beck estabeleceu-se numa colina, próxima ao
riacho Pajeú, onde hoje é o quartel general da 10ª Região Militar no
centro de Fortaleza. Ali construiu o forte Schoonenboch, em 1649, nome dado em
homenagem ao presidente do Alto Conselho Holandês no Brasil, Walter van
Schoonenboch.
Na expedição de Beck havia
especialistas, prateiros, mineiros e ourives e um religioso protestante para
cristianizar os índios. As minas foram procuradas ao norte da serra de
Maranguape e na Ibiapaba. Somente no
primeiro lugar encontrou-se prata. Contudo, em quantidade mínima.
Em 1654 os portugueses reconquistam o
Nordeste holandês e se reestabelecem no Ceará, rebatizando o forte holandês que
passou a se chamar Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. No local aos poucos
formar-se-ía um pequeno povoado, com o mesmo nome, que daria origem a de
Fortaleza.
Os holandeses e os índios
As estratégias de contato dos holandeses com os índios eram semelhantes às
práticas portuguesas. Uma dessas estratégias era manter alianças com os nativos
e para isso utilizavam todos os meios. Os holandeses já usavam essa tática bem
antes da ocupação do Nordeste brasileiro, já nos encontros costeiros com os
índios, obtendo informações sobre a região e suas riquezas minerais, levando
alguns à Holanda onde aprenderam a falar e escrever holandês e posteriormente,
seriam de grande importância no ofício de intérpretes, intermediadores e outros
serviços durante o domínio holandês. Pedro Poti e Antônio Paraupaba teriam sido
dois índios que estudaram na Holanda com esse objetivo. Mesmo que o governo
holandês reclamasse da resistência desses índios à cultura holandesa, acusando-os
de comportamentos ''perversos e selvagens”.
No governo de Maurício de Nassau havia a preocupação em atrair e
conservar a amizade dos índios, reconhecendo a importância desses aliados para
ao domínio do Nordeste. Na prática, os holandeses exploraram e escravizavam os
índios, causando reações nativas, muitas vezes fatais.
O nível de abusos e exploração que portugueses e holandeses cometiam com
os índios tinha a mesma intensidade. A liberdade que o governo holandês
propagava para índios não surgia como um direito fundamental conquistado, mas
como simples concessão, tolerância e benevolência dos dominantes. A liberdade
indígena não existia. Se os holandeses foram mais tolerantes, se Maurício de
Nassau foi um administrador liberal, concedendo direitos às minorias indígenas
isso não os levou a se relacionar com os nativos diferentemente dos
portugueses, pois viam-nos como seres inferiores e passíveis de serem
utilizados ao bel prazer dos interesses econômicos.
No Ceará, o contato entre os nativos e os holandeses foi marcado pela
cobiça, violência e exploração, similares às portuguesas. Do mesmo modo, foram
as estratégias de acordos e amizades, muito importantes para os holandeses para
moverem-se em uma região desconhecida e perigosa e até fatal, quando a cobiça e
a violência prevaleciam sobre as relações amistosas com os nativos, ou quando
as circunstâncias coloniais levavam os indígenas a romperem as alianças. Um
exemplo nesse sentido é o caso do índio Algodão, cuja aldeia era “amiga” dos
portugueses e que se tornou aliada dos holandeses em 1637, para tomar o forte português
no Ceará.
Várias outras aldeias locais foram contatadas e aos seus chefes foram
enviadas faquinhas de ferro, tesourinhas etc., visando atraí-los, torná-los
aliados. De certa forma, os holandeses atraíram muitos, outros se aproximaram e
isso foi habilmente manipulado pelos comandantes. Faltou-lhes, contudo,
habilidade para manter as alianças. Em 1642, os indígenas da Ibiapaba, que até
então tinham sido seus aliados, acompanhando-os na guerra do Maranhão contra os
portugueses, insatisfeitos com os maus tratos e por não serem devidamente pagos
pelo trabalho, destruíram as benfeitorias e assassinaram os soldados e o
comandante holandeses.
O próprio governo holandês reconhecia mais tarde que a reação dos índios
do Ceará devia-se ao desrespeito aos seus costumes, por não se cumprir os
acordos e por não serem pagos pelos trabalhos realizados. Erros que eles
tentaram corrigir mais tarde com a remessa de tecidos para pagar aos índios do
Ceará que estavam na guarnição do Maranhão.
Gideon Moris de Jonge afirmava que os índios eram muito exagerados quando
afirmavam que havia muito âmbar gris1
no Ceará. Contudo, continuava a atraí-los
o melhor que podia, dando-lhes comida, bebida e presentes. Apesar dos atrativos
agrados, os índios voltavam sempre com o pretexto de que nada haviam encontrado.
Acreditava Gideon, porém, que havia âmbar e que os índios o encontravam,
contudo o levavam a outros lugares, visto que eles se movimentavam durante todo
o dia, correndo acima e abaixo sem seu conhecimento e afirmavam que nada
fizeram para os portugueses e que nada fariam para os holandeses, pois a terra lhes
pertencia. Quanto ao trabalho nas roças, eles não o faziam sem o pagamento.
Em 1649, Matias Beck também usa índios da região para
encontrar e explorar supostas minas de prata. Beck os atrai com presentes de
biscoitos e vinhos. Assim como os portugueses, os holandeses nada faziam sem
consultar os índios aliados, conhecedores da língua e costumes dos outros
grupos cearenses, da geografia e dos produtos que economicamente interessavam
aos colonizadores.
Alguns chefes indígenas aproximaram-se dos holandeses
com satisfação e manifestando amizade, outros com receio. Todos movidos por
seus interesses. A cobiça holandesa pelas supostas minas existentes no Ceará
logo tornou-se muito clara para os nativos, motivo para barganhar ferramentas,
comida, bebida e vestimentas: a exemplo do índio Caraya, o qual foi presenteado
com sapatos, chapéu, camisa, meias e uma espada, em troca de informações sobre
as minas; e do chefe João Algodão que depois de ter reiterado sua amizade a Beck, mostrou-se
insatisfeito com os presentes recebidos e achando-se mais importante, por
ter o maior número de índios sob seu comando, recusou-os e exigiu do holandês
um vestido vermelho ou escarlate, bordado a ouro ou prata.
Para Beck, a aproximação com os chefes indígenas
significava segurança, informações e vantagens futuras. Os chefes, por sua vez,
exigiam, barganhavam, escondiam, mentiam e chantageavam os holandeses com frequência,
criando voluntariamente engodos e informações erradas para desorientá-los,
trocando as informações sobre o local das minas.
Beck sabia que os nativos usavam a política
“pacificadora” e o desejo de dar informações para conseguir presentes. Por
isso, mantinha sua tolerância e paciência e acreditava em todas as informações
dadas por muitos informantes, seguia todas as pistas apresentadas, dava todas
os presentes exigidos pelos indígenas e aceitava inclusive a recusa dos índios
em serem mensageiros ou a cultivarem roças para o sustento dos holandeses.
Quando os índios souberam da expulsão dos holandeses
do Brasil, rapidamente manifestaram o que Beck temia. Apoderaram-se das roças,
escravos e demais holandeses e assassinaram boa parte dos soldados. O restante
da guarnição só foi salva graças aos canhões e o pequeno forte que a protegeu
dos antes "amigos" índios, enquanto os portugueses chegavam e os
salvariam.
O resultado dos conflitos entre portugueses e holandeses, em Pernambuco,
foi o que determinou de que lado os índios ficariam, ou seja, para onde as
circunstâncias coloniais lhes fossem mais favoráveis. De fato, eles temiam uma
reação dos portugueses devido às alianças que haviam mantido até então com os
holandeses. Assim, a necessidade de se ajustarem à nova situação, isto é, à
reconquista portuguesa do Ceará se tornou necessária.
Referências
BARROS, Paulo Sérgio. Confrontos Invisíveis:
Colonialismo e Resistência no Ceará. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secult,
2002.
_______, Cultura e Resistência Indígena no Ceará
Colonial (1603-1720). Monografia de Bacharelado. Departamento de História, Universidade
Federal do Ceará, 1992.
BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História. São Paulo: Ática,
2003.
CÂMARA, José Aurélio. Aspectos do Domínio Holandês no
Ceará. Revista do Instituto do Ceará, Tomo 70,
Editora do Instituto do Ceará, 1956.
MELLO. José Gonçalves de. Tempo dos Flamengos. Rio de
Janeiro: José Olímpio, 1947.