quarta-feira, 4 de junho de 2014

                                                 Os Holandeses no Ceará

                                                                                           Paulo Sérgio Barros·

Para compreendermos o sentido da ocupação holandesa no Ceará no século XVII, é preciso que voltemos no tempo para sabermos um pouco da história da Europa, especificamente de Portugal e Espanha.

           Em 1568, dom Sebastião assumiu o trono português aos 14 anos de idade. Dez anos depois, ainda solteiro, morreu na batalha de Alcácer Quibir, contra os muçulmanos no norte da África. Como não deixou herdeiros, quem assumiu o trono foi seu tio-avô, o cardeal dom Henrique, que morreu pouco depois, em 1580. Sem herdeiros para o trono português, o rei da Espanha, Felipe II reivindicou para si o trono português argumentando que era casado com dona Maria, filha de Dom João III de Portugal, avô de dom Sebastião. 

            Com o apoio da nobreza, do alto clero e de parte da burguesia portuguesa, o exército espanhol invadiu Portugal e colocou no trono o novo rei. Em 1581, pelo Tratado de Tomar instaurava-se União Ibérica, governada por uma monarquia dual que reinaria sobre os dois países até 1640. 
            A União Ibérica teve repercussões importantes para o Brasil, colônia portuguesa na América. Uma delas foram as hostilizações que Portugal, agora sob domínio espanhol, passou a sofrer das potências européias inimigas da Espanha, notadamente a Holanda com quem a Espanha estava em guerra. 

            Os holandeses invadiram e ocuparam as regiões brasileiras produtoras de açúcar durante 24 anos (1630-1654), pois pretendiam continuar dominando o comércio mundial desse produto, domínio que a Espanha também pretendia. As primeiras tentativas holandesas foram na Bahia em 1624 e 1625. Expulsos da Bahia, voltaram sua atenção para Pernambuco, a maior e mais rica região produtora de açúcar do mundo. Estabelecendo-se em Pernambuco, os holandeses conquistaram vasta área que hoje corresponde parte dos estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, parte do Litoral do Ceará e São Luís do Maranhão.

            Os senhores de engenho do Nordeste não reagiram à ocupação holandesa. Para eles o que interessava era ganhar dinheiro com a venda do açúcar, quer fosse para portugueses ou holandeses. Além do mais os holandeses fizeram empréstimos aos senhores de engenho para que eles reconstruíssem as propriedades destruídas pela guerra. Em 1637, Johann Mauritius van Nassau (Maurício de Nassau) foi nomeado governador das terras holandesas no Brasil. O Novo governador, além de manter a aliança com os senhores de engenho, trouxe na sua comitiva 46 artistas, cientistas, artífices e sábios para estudar e retratar a natureza do Brasil. Outro aspecto que marcou a administração de Nassau foi o embelezamento do Recife, a capital do Brasil holandês, através da construção de pontes e de obras sanitárias.

Os holandeses chegam ao Ceará

             Os holandeses fizeram duas investidas no sentido de dominar o Ceará. A primeira foi em 1637, comandada por Jorris Garstman que dominou a pequena guarnição portuguesa do Fortim de São Sebastião, tendo o apoio do chefe indígena Algodão. Nesse primeiro momento os holandeses visavam a conquista da ilha de São Luís do Maranhão e a conquista do Ceará serviria como um ponto de apoio para um futuro ataque ao Maranhão. Contudo, em primeiro lugar, eles objetivavam explorar as salinas do litoral cearense, para o qual usaram a mão –de obra indígena. 

              A aliança do chefe indígena com os holandeses não durou muito. A violação dos acordos, o uso da violência e exploração da força de trabalho, pôs os índios em estado de tensão, levando-os a destruir as fortificações construídas e assassinar Moris de Junge, o comandante que havia ficado no Ceará, e toda a sua guarnição no forte se São Sebastião, em 1644, o qual havia sido edificado na Barra do Ceará, em 1612, pelo primeiro colonizador português do Ceará, Martim Soares Moreno. 

               Até 1649 nem portugueses nem holandeses dominaram o Ceará. Neste ano Matias Beck retorna à região e restabelece o domínio holandês até 1654 quando foram expulsos do Brasil.
A vinda de Matias Beck era com o objetivo de procurar supostas minas de prata, talvez ouro, que seriam de grande importância para sanear as finanças do governo holandês no Brasil.

               Beck estabeleceu-se numa colina, próxima ao riacho Pajeú, onde hoje é o quartel general da 10ª Região Militar no centro de Fortaleza. Ali construiu o forte Schoonenboch, em 1649, nome dado em homenagem ao presidente do Alto Conselho Holandês no Brasil, Walter van Schoonenboch. 

     Na expedição de Beck havia especialistas, prateiros, mineiros e ourives e um religioso protestante para cristianizar os índios. As minas foram procuradas ao norte da serra de Maranguape e na Ibiapaba.  Somente no primeiro lugar encontrou-se prata. Contudo, em quantidade mínima.

               Em 1654 os portugueses reconquistam o Nordeste holandês e se reestabelecem no Ceará, rebatizando o forte holandês que passou a se chamar Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. No local aos poucos formar-se-ía um pequeno povoado, com o mesmo nome, que daria origem a de Fortaleza.

Os holandeses e os índios

As estratégias de contato dos holandeses com os índios eram semelhantes às práticas portuguesas. Uma dessas estratégias era manter alianças com os nativos e para isso utilizavam todos os meios. Os holandeses já usavam essa tática bem antes da ocupação do Nordeste brasileiro, já nos encontros costeiros com os índios, obtendo informações sobre a região e suas riquezas minerais, levando alguns à Holanda onde aprenderam a falar e escrever holandês e posteriormente, seriam de grande importância no ofício de intérpretes, intermediadores e outros serviços durante o domínio holandês. Pedro Poti e Antônio Paraupaba teriam sido dois índios que estudaram na Holanda com esse objetivo. Mesmo que o governo holandês reclamasse da resistência desses índios à cultura holandesa, acusando-os de comportamentos ''perversos e selvagens”.
 No governo de Maurício de Nassau havia a preocupação em atrair e conservar a amizade dos índios, reconhecendo a importância desses aliados para ao domínio do Nordeste. Na prática, os holandeses exploraram e escravizavam os índios, causando reações nativas, muitas vezes fatais.
O nível de abusos e exploração que portugueses e holandeses cometiam com os índios tinha a mesma intensidade. A liberdade que o governo holandês propagava para índios não surgia como um direito fundamental conquistado, mas como simples concessão, tolerância e benevolência dos dominantes. A liberdade indígena não existia. Se os holandeses foram mais tolerantes, se Maurício de Nassau foi um administrador liberal, concedendo direitos às minorias indígenas isso não os levou a se relacionar com os nativos diferentemente dos portugueses, pois viam-nos como seres inferiores e passíveis de serem utilizados ao bel prazer dos interesses econômicos.
No Ceará, o contato entre os nativos e os holandeses foi marcado pela cobiça, violência e exploração, similares às portuguesas. Do mesmo modo, foram as estratégias de acordos e amizades, muito importantes para os holandeses para moverem-se em uma região desconhecida e perigosa e até fatal, quando a cobiça e a violência prevaleciam sobre as relações amistosas com os nativos, ou quando as circunstâncias coloniais levavam os indígenas a romperem as alianças. Um exemplo nesse sentido é o caso do índio Algodão, cuja aldeia era “amiga” dos portugueses e que se tornou aliada dos holandeses em 1637, para tomar o forte português no Ceará.
Várias outras aldeias locais foram contatadas e aos seus chefes foram enviadas faquinhas de ferro, tesourinhas etc., visando atraí-los, torná-los aliados. De certa forma, os holandeses atraíram muitos, outros se aproximaram e isso foi habilmente manipulado pelos comandantes. Faltou-lhes, contudo, habilidade para manter as alianças. Em 1642, os indígenas da Ibiapaba, que até então tinham sido seus aliados, acompanhando-os na guerra do Maranhão contra os portugueses, insatisfeitos com os maus tratos e por não serem devidamente pagos pelo trabalho, destruíram as benfeitorias e assassinaram os soldados e o comandante holandeses.
O próprio governo holandês reconhecia mais tarde que a reação dos índios do Ceará devia-se ao desrespeito aos seus costumes, por não se cumprir os acordos e por não serem pagos pelos trabalhos realizados. Erros que eles tentaram corrigir mais tarde com a remessa de tecidos para pagar aos índios do Ceará que estavam na guarnição do Maranhão.
Gideon Moris de Jonge afirmava que os índios eram muito exagerados quando afirmavam que havia muito âmbar gris1 no Ceará.  Contudo, continuava a atraí-los o melhor que podia, dando-lhes comida, bebida e presentes. Apesar dos atrativos agrados, os índios voltavam sempre com o pretexto de que nada haviam encontrado. Acreditava Gideon, porém, que havia âmbar e que os índios o encontravam, contudo o levavam a outros lugares, visto que eles se movimentavam durante todo o dia, correndo acima e abaixo sem seu conhecimento e afirmavam que nada fizeram para os portugueses e que nada fariam para os holandeses, pois a terra lhes pertencia. Quanto ao trabalho nas roças, eles não o faziam sem o pagamento.
Em 1649, Matias Beck também usa índios da região para encontrar e explorar supostas minas de prata. Beck os atrai com presentes de biscoitos e vinhos. Assim como os portugueses, os holandeses nada faziam sem consultar os índios aliados, conhecedores da língua e costumes dos outros grupos cearenses, da geografia e dos produtos que economicamente interessavam aos colonizadores.

Alguns chefes indígenas aproximaram-se dos holandeses com satisfação e manifestando amizade, outros com receio. Todos movidos por seus interesses. A cobiça holandesa pelas supostas minas existentes no Ceará logo tornou-se muito clara para os nativos, motivo para barganhar ferramentas, comida, bebida e vestimentas: a exemplo do índio Caraya, o qual foi presenteado com sapatos, chapéu, camisa, meias e uma espada, em troca de informações sobre as minas; e do chefe João Algodão que depois de ter  reiterado sua amizade a Beck, mostrou-se insatisfeito com  os presentes  recebidos e achando-se mais importante, por ter o maior número de índios sob seu comando, recusou-os e exigiu do holandês um vestido vermelho ou escarlate, bordado a ouro ou prata.

Para Beck, a aproximação com os chefes indígenas significava segurança, informações e vantagens futuras. Os chefes, por sua vez, exigiam, barganhavam, escondiam, mentiam e chantageavam os holandeses com frequência, criando voluntariamente engodos e informações erradas para desorientá-los, trocando as informações sobre o local das minas.

Beck sabia que os nativos usavam a política “pacificadora” e o desejo de dar informações para conseguir presentes. Por isso, mantinha sua tolerância e paciência e acreditava em todas as informações dadas por muitos informantes, seguia todas as pistas apresentadas, dava todas os presentes exigidos pelos indígenas e aceitava inclusive a recusa dos índios em serem mensageiros ou a cultivarem roças para o sustento dos holandeses.

Quando os índios souberam da expulsão dos holandeses do Brasil, rapidamente manifestaram o que Beck temia. Apoderaram-se das roças, escravos e demais holandeses e assassinaram boa parte dos soldados. O restante da guarnição só foi salva graças aos canhões e o pequeno forte que a protegeu dos antes "amigos" índios, enquanto os portugueses chegavam e os salvariam.

O resultado dos conflitos entre portugueses e holandeses, em Pernambuco, foi o que determinou de que lado os índios ficariam, ou seja, para onde as circunstâncias coloniais lhes fossem mais favoráveis. De fato, eles temiam uma reação dos portugueses devido às alianças que haviam mantido até então com os holandeses. Assim, a necessidade de se ajustarem à nova situação, isto é, à reconquista portuguesa do Ceará se tornou necessária.

 

Referências


BARROS, Paulo Sérgio. Confrontos Invisíveis: Colonialismo e Resistência no Ceará. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secult, 2002.
_______, Cultura e Resistência Indígena no Ceará Colonial (1603-1720). Monografia de Bacharelado.   Departamento de História, Universidade Federal do Ceará, 1992.
BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História. São Paulo: Ática, 2003.
CÂMARA, José Aurélio. Aspectos do Domínio Holandês no Ceará. Revista do Instituto do Ceará, Tomo 70,
Editora do Instituto do Ceará, 1956.
MELLO. José Gonçalves de. Tempo dos Flamengos. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1947.





· Professor. Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco.
1 Substância sólida, cinzenta, formada pelas concreções intestinais dos cachalotes. Tem cheiro semelhante ao do almiscar e é empregado em perfumaria (Encicopédia Globo).

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