sábado, 7 de fevereiro de 2015

Yvy Maraey: O paraíso tupi-guarani[1]

                                                              Paulo Sérgio Barros[2]

              Os tupi-guarani encontravam-se distribuídos, por volta do século XVI, pela bacia Paraná-Paraguai e o litoral desde a lagoa dos Patos até Cananéia (o caso guarani).  Já os tupi ocupavam uma extensa faixa litorânea desde Iguape até o Ceará.
              Povo de mitologia rica cujo núcleo estava no fenômeno da busca da terra sem mal (Yvy Maraey) situada num passado glorioso ou num futuro próximo, visto que, para esse povo, o tempo tinha uma natureza cíclica, isto é, o fim do mundo preludiava sempre um recomeço.
              Alimento de um porvir grandioso, o retorno a um passado que se identificava com a idade do ouro da cultura tupi-guarani, a busca da terra sem mal também estava relacionada aos mitos da destruição do universo pelo fogo e a água. Logo repovoado a partir de um casal de irmãos sobreviventes no alto  de uma palmeira.
              A terra sem mal era um tempo sagrado, de redenção, de eterna juventude, de imortalidade. Estava situada no centro da terra, onde o criador construiu sua morada e preparou os campos maravilhosos que dão abundantes colheitas. Ou situada a leste, como acreditavam os Guarani que migraram do Paraguai, no século XVI, e diziam ter um ancestral (Tamói) que teria voado para o oriente e que os resgataria do alto de uma árvore sagrada e os conduziria ao leste, onde ressuscitariam e usufruiriam de todos os bens da vida terrena.
              Os profetas indígenas (Caraíbas) se apresentavam como reencarnações de heróis tribais, espíritos superiores, os quais os certificavam da existência de uma terra sem os males da fome, das doenças, da perseguição colonial, terra da imortalidade, do repouso eterno, da exuberância e da abundância. Os Caraíbas incentivavam os índios a abandonarem o trabalho e a dançar, participar de rituais e peregrinações, pois o tempo da abundância e da felicidade estava para chegar. Levando-os a ingressar no mundo dos ancestrais; abandonar o tempo cotidiano e vivenciar o tempo eterno, o tempo dos deuses.

Migrações

              Muitas migrações ocorreram, muitos índios sucumbiram e os Caraíbas acabaram sós. Eles foram duramente perseguidos e acusados de falsos, mentirosos e enganadores pelos agentes coloniais, que não mediam esforços para desmistificá-los e impedir as migrações, como ocorreu em 1562 com três mil índios da Bahia que tentavam fugir para o sertão, evitando assim, a perda de grande contingente de mão-de-obra para o trabalho colonial.
              Contudo, muitos grupos migraram para o oeste e, provavelmente o litoral em vias de colonização, contribuiu para isso. No ano de 1539 12 mil índios iniciaram migração em direção ao norte do Brasil, 10 anos depois 300 remanescentes teriam chegado à província peruana de Chachapoyas, e ao terem narrado aos espanhóis sua odisséia em busca de uma região faustosa, onde abundava o ouro e as pedras preciosas, teriam despertado o interesse hispânico e determinado a malfadada expedição de Pedro de Urso, em busca da lendária Eldorado. Entre fins do século XVI e inícios do XVII entre 8 e 10 mil índios teriam migrado de Pernambuco para o Maranhão, em levas sucessivas, em busca da terra sem mal, fugindo do colonialismo.

A inversão do mundo

              Alguns grupos tupi também pregavam a inversão da ordem sociocultural vigente. Os Tupinambá da Bahia quinhentista organizaram um movimento (santidade) de forte sentido anticolonialista, antiescravista e anticristão. Os Caraíbas diziam que iriam fazer os escravos virarem “senhores de seus senhores”. Os Tabajara da serra da Ibiapaba, no Ceará seiscentista, acreditavam na inversão da ordem colonialista. Segundo um dos chefes dessa etnia, Deus reencarnaria, daria uma volta ao mundo, fazendo com que o céu ficasse para baixo e a terra para cima e os índios dominariam os brancos. De certa forma, a inversão do mundo não é somente geográfica, é social e política, ou seja, é o fim da escravidão, da perseguição e do controle colonial sobre suas liberdades, cultura e bens materiais. É ilustrativo, nesse sentido, o fato de três líderes indígenas serranos acreditarem terem aldeias subterrâneas para onde iriam, depois da morte, com seus súditos onde viveriam livres dos colonizadores e com abundância de recursos.

A terra sem mal

              Em 1912, Curt Nimuendaju encontrou um grupo de Guarani à procura do paraíso perdido, próximo ao oceano. Seria, segundo os estudiosos do tema, o último de uma série de movimentos migratórios empreendidos por esse povo com o mesmo propósito.
              Estudiosos das migrações tupinambá assinalam como suas principais causas o insaciável desejo por guerras, aventuras e fuga da dominação colonialista. Contudo, não há como negar que a busca da terra sem mal era uma de suas determinantes.
              Não sabemos em que dimensão essa busca se dava antes da colonização. Contudo, devemos considerar que a crença no paraíso é um fato que permeia todas as culturas, inclusive a colonizadora. Colombo, acreditava profundamente que as novas terras onde havia chegado tratava-se das Índias, onde estava situado o paraíso terrestre.
              As profecias ameríndias eram meramente quimeras ou memórias? Qual a relação das crenças tupi-guarani com os nossos desejos atuais por um mundo melhor? Somos herdeiros culturais desses povos, assim como o somos do cristianismo, culturas que crêem no paraíso. Hoje em dia, muitos grupos, religiões e filosofias creem e anunciam a chegada do paraíso, depois de uma transformação do mundo. Outros acreditam num mundo melhor através das revoluções sociais, políticas etc. Se fomos e/ou vamos ser companheiros de Adão e Eva, não o sabemos. Seja como for, todos queremos o mesmo: um mundo justo, feliz e pacífico, onde vivamos fraternalmente, com respeito, amor e dignidade. Se conseguirmos encontrar/criar tal sociedade, será o paraíso.

Referências

BARROS, Paulo Sérgio. Confrontos Invisíveis: colonialismo e resistência indígena no Ceará. São Paulo, Annablume; Fortaleza, Secult, 2002.     
MÉTRAUX, Alfred. A Religião dos Tupinambá. São Paulo: Editora Nacional; Editora   da Universidade de São Paulo, 1979.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil              colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.



[1] Texto originalmente publicado na Revista Rainha dos Apóstolos no. 954, abril de 2004.

[2] Professor, Mestre em História. Tem livro e artigos publicados sobre história e cultura indígena no Ceará colonial.

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