quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

É impossível compreender seu tempo para quem ignora todo  o passado; ser uma pessoa contemporânea é também ter consciência das heranças, consentidas ou contestadas.

René Rémond, historiador francês.

segunda-feira, 20 de abril de 2015


De Renato barbieri
"Com intuito manifesto, o documentário “Atlântico Negro – Na Rota dos Orixás” vai buscar em África o além do pouco que sabemos, desmistificando a imagem unilateral difundida de um continente bélico tomado por fome e pobreza. Pouco sabemos do cotidiano dos africanos, personalizados no filme em grupos e comunidades locais do litoral do Benin, de onde milhares de negros vieram escravizados para o Brasil.
O filme apresenta ao espectador personagens como Pai Euclides, babalorixá da Casa Fanti Ashanti, em São Luís do Maranhão, que inicia o enlace da narrativa enviando uma mensagem ao amigo vodunon Avimanjenon, chefe do Templo de Avimanje, em Ouidá, cidade de onde partiram incontáveis navios negreiros para Salvador. A mensagem maior, o filme, discorre por 53 minutos de tamanha riqueza plástica e documental, recriando ao espectador pequenas narrativas que vão completando lacunas, como ainda é a própria história africana contada a nós.
In: http://www.revistaovies.com/estante/2013/07/atlantico-negro-na-rota-dos-orixas/

Proposta de reflexão sobre o documentário 
(V Olimpíada brasileira de história - UNICAMP/2013 - Curso de Formação).

1 - Qual o enfoque privilegiado pelos diretores do documentário?
2 - Além do tema central, quais são os outros temas tratados no documentário e de que     forma auxiliam a compreender o Atlântico Negro?
3 - É possível relacionar o documentário com conteúdos tratados neste módulo? Explique.
4 - É possível identificar diferentes narrativas no documentário: historiadores,                   antropólogos, religiosos, descendentes de brasileiros, etc. Você identifica divergências       e convergências entre elas? Exemplifique.


quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Trabalho Análogo à Escravidão - Trabalho Degradante
 

“(...) Entendimento sem conceitos é sol sem raios”.[1]
Dercides Pires da Silva
AFT, Coordenador de Grupo Móvel.
Desde a advento da Lei 10.803, de 11 de dezembro de 2003, que modificou o artigo 149 do Código Penal Brasileiro, o conceito e a caracterização do trabalho degradante está a desafiar os operadores do Direito. Com essa modificação, o legislador elevou a nove os tipos penais caracterizadores do trabalho análogo à escravidão: submeter o trabalhador a trabalhos forçados; submeter o trabalhador a jornada exaustiva; sujeitar o trabalhador a condições degradantes de trabalho; restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com o empregador; restringir, por qualquer meio, a locomoção do trabalhador em razão de dívida contraída com preposto do empregador; cercear o uso de qualquer meio detransporte por parte do trabalhadorcom o fim de retê-lo no local de trabalho; manter vigilância ostensiva no local de trabalho, com o fim de retê-lo no local de trabalho; apoderar-se de documentos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; apoderar-se de objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho.
Para compreender o fenômeno anti-social, anti-humano e antijurídico conhecido como trabalho análogo à escravidão é necessário despir-se da ideologia escravocrata dominante que se esconde nos recônditos da alma de interesses mesquinhos que dominam a humanidade desde as  sociedades tribais e que na antigüidade empurravam o trabalho para os escravos, a fim de que os cidadãos pudessem ter uma mente sã num corpo são, e que hoje se manifesta na aceitação tácita que a sociedade outorga a esta abominável prática. Tal aceitação se configura no silêncio das pessoas de bem ante os porões e senzalas que são mantidos a céu aberto nos dias atuais em todas as regiões do Brasil, atingindo todos os quadrantes do nosso País. Pouquíssimas pessoas de bem ficam indignadas com a neo-escravidão e não tomam eficazmente nenhuma medida política, jurídica, econômica ou moral contra ela. Tal inércia equivale a aceitar a escravidão.
Para entender o conceito de trabalho escravo é também necessário compreender que o modo escravo de produção jamais deixou o nosso País, pois os escravos negros, com a chamada Lei “Áurea”, não foram promovidos a cidadãos; somente os seus corpos deixaram de pertencer fisicamente aos escravocratas, mas sua mão-de-obra continuou a servir os antigos senhores tal como sempre servira, e ainda de forma mais vantajosa, uma vez que os antigos senhores podiam pagar – como inda pagam – míseros salários, sem ter nenhuma outra obrigação com o neo-escravo ou com sua família.
Ante tal quadro é fácil compreender a razão pela qual o nosso arcabouço jurídico não coíbe eficazmente as formas de trabalho escravo existentes. Pior do que a estrutura jurídica tem sido a aplicação das leis que já existem, a começar pelos inquéritos que não se fazem, passando pelas ações penais que não são propostas, chegando, enfim, às penas que não se cominam.
Enfim, para enxergar e caracterizar a neo-escravidão, é necessário compreender que conceituar os objetos das ciências sociais é tentar impor limites aos pensamentos: tarefa ingente; é tentar domar o vento ou calar a tempestade: tarefa quixotesca. As ciências sociais são águas em ebulição, não se aquietam, preferem evaporar-se a quedarem inertes nas mãos curiosas dos pesquisadores. Hoje é; amanhã, quem sabe? Ao romper da aurora parece certo; no crepúsculo, erro crasso.
Inobstante os desafios, conscientes de que “o que a beleza é para os olhos e a harmonia para os ouvidos, o conceito é para o entendimento,”[2] opinamos no sentido de que é necessário o debate sobre trabalho análogo à escravidão, por três motivos, pelo menos. Primeiro porque, no campo conceitual, não se consegue aceitar uma idéia que não se compreende; segundo, porque não se aplica um conceito mal compreendido; terceiro, porque os operadores do direito, de todas as classes, detêm consideráveis doses de livre convencimento. Com base neste livre convencimento é fácil se esquivar da aplicação de leis que não se acomodam na ideologia de quem deve promover a justiça, mormente quando a sociedade aceita tacitamente as injustiças que se cometem. O debate é um dos meios que se usa para desmascarar as injustiças.
Entre os tipos penais do artigo149 do Código Penal Brasileiro, dois merecem ser debatidos com urgência: jornada exaustiva, em virtude das mortes ocorridas nos canaviais, e o trabalho degradante por ser a forma mais comum de crimes contra o ser humano praticado no âmbito da relação de trabalho.
O que é trabalho degradante? Como identificar um trabalho degradante? Degradante é sinônimo de humilhante e deriva do verbo degradar; é o ato ou fato que provoca degradação, desonra. Degradação é o ato ou o efeito de degradar. Degradar é privar de graus, títulos, dignidades, de forma desonrante. Degradar é o oposto a graduar, a promover; degradar é despromover. Degradante é o fato ou ato que despromove, que rebaixa, que priva do estatus ou do grau de cidadão; que nega direitos inerentes à cidadania; que despromove o trabalhador tirando-o da condição de cidadão, rebaixando-o a uma condição semelhante à de escravo, embora sem ser de fato um escravo. Portanto, trabalho degradante é aquele cuja relação jurídica não garante ao trabalhador os direitos fundamentais da pessoa humana relacionados à prestação laboral.
O trabalho degradante afronta os direitos humanos laborais consagrados pela Declaração Universal dos Direitos Humanos e abrigados pela Constituição da República Federativa do Brasil, assim como pela Consolidação das Leis do Trabalho e pelas Normas Regulamentadoras, as já populares “NRs”, entre outras normas jurídico-laborais.
Identifica-se um trabalho degradante passando a relação de trabalho pelo crivo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), pela Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB), pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e pelas Normas Regulamentadoras (NR).
 Os artigos XXIII, XXIV e XXV da DUDH diz que toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego; a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e férias periódicas remuneradas e a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle.
A CRFB trata do tema em vários dispositivos, entre eles podemos citar os incisos II, III e IV do artigo 1º, que visa garantir a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. Os incisos I, III e IV do artigo 3º que coloca entre os objetivos fundamentais da República Brasileira uma sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza, marginalização e desigualdades, assim como a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Ainda podemos destacar os seguintes artigos da CRFB que servem para combater a prática do trabalho análogo à escravidão: Art. 4º, II; Art. 5º III; Art. 6º; Art. 7º, XXII, XXVIII; Art. 170, III; Art. 186, III, IV e Art. 193.
Como o trabalho degradante é encontradiço nos ambientes de trabalho inadequados que são disponibilizados aos trabalhadores, é de particular importância, para identificá-lo e caracterizá-lo, a compreensão do capítulo V da CLT, bem como das NR, em particular da Norma Regulamentadora 31, pois o descumprimento dessas normas é que, na prática, se configura a negativa da cidadania que o empregador deve garantir aos seus empregados.
Quanto à NR 31, sua observância deve ser bastante criteriosa pelo aplicador do Direito, pois suas normas, no que toca ao ambiente de trabalho, vieram de forma incompleta, além de se situarem na linha divisória entre a cidadania e a não-cidadania, de forma tal que qualquer descumprimento às mesmas pode colocar o trabalhador em situação degradante, portanto, em trabalho análogo à escravidão.



[1] SARAIVA, Antônio J. Discurso Engenhoso. São Paulo-SP: Perspectiva, 1980. p. 129 e 132 – Analisando o estilo engenhoso do escritor espanhol Baltasar Gracián, que viveu no Século XVII, transcreve estes trechos de uma de suas obras: “Lo que es para los ojos la hermosura y para los oídos la consonância, eso es para el entendimiento el concepto.” “(...) Entendimiento sin conceptos es sol sin rayos; (...).”
[2] Idem.


Agradecemos a colaboração dos colegas AFT's Cláudio Secchin e Dercides Pires da Silva

________________
Fonte: http://www.sinpait.com.br/site/internas.asp?area=9915&id=532. Acesso em: 19/02/2015.

Roteiro para observação e análise de Filme (Sinopse)




01 - Quanto à qualificação do filme
1-      Nome do filme:
2-      País de origem:
3-      Direção e/ou produção:
4-      Tempo de duração:
5-      Ano de produção:
6-      Gênero (suspense, comédia, drama, infantil etc.):
7-      Tipo de filme (comercial, ficção, documentário etc.):
8-      Tema principal:
9-      Elenco de atores:
10-  Trilha sonora:


02 - Construção de uma pequena sinopse.
11-  Qual o tema tratado e como se desenvolve a trama?
12-  Identificação da época em que a narrativa se desenrola.


03 – Quanta à descrição das personagens
13-  Quais são os principais?
14-  Quais são os secundários?
15-  Características físicas que o s distingue entre si.
16-  Características psicológicas que os distingue.
17-  Qual a personagem que mais chamou a sua atenção? Justifique o porquê.
18-  Quais os aspectos que diferenciam os personagens? (Vestuário, moradia etc.)


04 – Quanto ao enredo
19-  Como começa a narrativa do filme?
20-  Que parte do filme lhe chamou mais a atenção? Por quê?
21-  Comente sobre uma cena que mais lhe chamou a atenção.
22-  Você gostou do final? Seria capaz de pensar em outro final que não seja aquele?
23-  Qual diálogo mais chamou a sua atenção? Por quê?
24-  Qual parte da história você considera importante para entender todo o enredo?

05 – Quanto ao ambiente
25-  Em que ambiente se desenrola o filme?
26-  Os cenários são naturais ou construídos em estúdio?
27-  A paisagem identifica um espaço geográfico que você conhece ou sabe localizar?


06 – Quanto ao ponto de vista filosófico e político
28-  O que o filme relata pode acontecer na realidade?
29-  Você acha que o filme representa situações e atitudes positivas ou negativas em relação à humanidade? Quais?
30-  Que tipo de emoções o filme despertou? Foram agradáveis ou desagradáveis?
31-  Você aprendeu alguma coisa com esse filme? O que exatamente?
32-  Na sua opinião que valores e anti-valores o filme expressou?
33-  Você acha que a idéia de caráter que o filme expressa tem a ver com o povo brasileiro? Comente.

07 – Outros comentários
34-  Você gostou do filme? Justifique a resposta.
35-  Você acha que podemos relacionar esse conteúdo do filme aos que conteúdos que estudamos nas aulas? Como? Quais?
36-  No que esta atividade contribui para o seu desenvolvimento intelectual?

37-  Comente livremente o que você achou deste trabalho.

sábado, 7 de fevereiro de 2015

Yvy Maraey: O paraíso tupi-guarani[1]

                                                              Paulo Sérgio Barros[2]

              Os tupi-guarani encontravam-se distribuídos, por volta do século XVI, pela bacia Paraná-Paraguai e o litoral desde a lagoa dos Patos até Cananéia (o caso guarani).  Já os tupi ocupavam uma extensa faixa litorânea desde Iguape até o Ceará.
              Povo de mitologia rica cujo núcleo estava no fenômeno da busca da terra sem mal (Yvy Maraey) situada num passado glorioso ou num futuro próximo, visto que, para esse povo, o tempo tinha uma natureza cíclica, isto é, o fim do mundo preludiava sempre um recomeço.
              Alimento de um porvir grandioso, o retorno a um passado que se identificava com a idade do ouro da cultura tupi-guarani, a busca da terra sem mal também estava relacionada aos mitos da destruição do universo pelo fogo e a água. Logo repovoado a partir de um casal de irmãos sobreviventes no alto  de uma palmeira.
              A terra sem mal era um tempo sagrado, de redenção, de eterna juventude, de imortalidade. Estava situada no centro da terra, onde o criador construiu sua morada e preparou os campos maravilhosos que dão abundantes colheitas. Ou situada a leste, como acreditavam os Guarani que migraram do Paraguai, no século XVI, e diziam ter um ancestral (Tamói) que teria voado para o oriente e que os resgataria do alto de uma árvore sagrada e os conduziria ao leste, onde ressuscitariam e usufruiriam de todos os bens da vida terrena.
              Os profetas indígenas (Caraíbas) se apresentavam como reencarnações de heróis tribais, espíritos superiores, os quais os certificavam da existência de uma terra sem os males da fome, das doenças, da perseguição colonial, terra da imortalidade, do repouso eterno, da exuberância e da abundância. Os Caraíbas incentivavam os índios a abandonarem o trabalho e a dançar, participar de rituais e peregrinações, pois o tempo da abundância e da felicidade estava para chegar. Levando-os a ingressar no mundo dos ancestrais; abandonar o tempo cotidiano e vivenciar o tempo eterno, o tempo dos deuses.

Migrações

              Muitas migrações ocorreram, muitos índios sucumbiram e os Caraíbas acabaram sós. Eles foram duramente perseguidos e acusados de falsos, mentirosos e enganadores pelos agentes coloniais, que não mediam esforços para desmistificá-los e impedir as migrações, como ocorreu em 1562 com três mil índios da Bahia que tentavam fugir para o sertão, evitando assim, a perda de grande contingente de mão-de-obra para o trabalho colonial.
              Contudo, muitos grupos migraram para o oeste e, provavelmente o litoral em vias de colonização, contribuiu para isso. No ano de 1539 12 mil índios iniciaram migração em direção ao norte do Brasil, 10 anos depois 300 remanescentes teriam chegado à província peruana de Chachapoyas, e ao terem narrado aos espanhóis sua odisséia em busca de uma região faustosa, onde abundava o ouro e as pedras preciosas, teriam despertado o interesse hispânico e determinado a malfadada expedição de Pedro de Urso, em busca da lendária Eldorado. Entre fins do século XVI e inícios do XVII entre 8 e 10 mil índios teriam migrado de Pernambuco para o Maranhão, em levas sucessivas, em busca da terra sem mal, fugindo do colonialismo.

A inversão do mundo

              Alguns grupos tupi também pregavam a inversão da ordem sociocultural vigente. Os Tupinambá da Bahia quinhentista organizaram um movimento (santidade) de forte sentido anticolonialista, antiescravista e anticristão. Os Caraíbas diziam que iriam fazer os escravos virarem “senhores de seus senhores”. Os Tabajara da serra da Ibiapaba, no Ceará seiscentista, acreditavam na inversão da ordem colonialista. Segundo um dos chefes dessa etnia, Deus reencarnaria, daria uma volta ao mundo, fazendo com que o céu ficasse para baixo e a terra para cima e os índios dominariam os brancos. De certa forma, a inversão do mundo não é somente geográfica, é social e política, ou seja, é o fim da escravidão, da perseguição e do controle colonial sobre suas liberdades, cultura e bens materiais. É ilustrativo, nesse sentido, o fato de três líderes indígenas serranos acreditarem terem aldeias subterrâneas para onde iriam, depois da morte, com seus súditos onde viveriam livres dos colonizadores e com abundância de recursos.

A terra sem mal

              Em 1912, Curt Nimuendaju encontrou um grupo de Guarani à procura do paraíso perdido, próximo ao oceano. Seria, segundo os estudiosos do tema, o último de uma série de movimentos migratórios empreendidos por esse povo com o mesmo propósito.
              Estudiosos das migrações tupinambá assinalam como suas principais causas o insaciável desejo por guerras, aventuras e fuga da dominação colonialista. Contudo, não há como negar que a busca da terra sem mal era uma de suas determinantes.
              Não sabemos em que dimensão essa busca se dava antes da colonização. Contudo, devemos considerar que a crença no paraíso é um fato que permeia todas as culturas, inclusive a colonizadora. Colombo, acreditava profundamente que as novas terras onde havia chegado tratava-se das Índias, onde estava situado o paraíso terrestre.
              As profecias ameríndias eram meramente quimeras ou memórias? Qual a relação das crenças tupi-guarani com os nossos desejos atuais por um mundo melhor? Somos herdeiros culturais desses povos, assim como o somos do cristianismo, culturas que crêem no paraíso. Hoje em dia, muitos grupos, religiões e filosofias creem e anunciam a chegada do paraíso, depois de uma transformação do mundo. Outros acreditam num mundo melhor através das revoluções sociais, políticas etc. Se fomos e/ou vamos ser companheiros de Adão e Eva, não o sabemos. Seja como for, todos queremos o mesmo: um mundo justo, feliz e pacífico, onde vivamos fraternalmente, com respeito, amor e dignidade. Se conseguirmos encontrar/criar tal sociedade, será o paraíso.

Referências

BARROS, Paulo Sérgio. Confrontos Invisíveis: colonialismo e resistência indígena no Ceará. São Paulo, Annablume; Fortaleza, Secult, 2002.     
MÉTRAUX, Alfred. A Religião dos Tupinambá. São Paulo: Editora Nacional; Editora   da Universidade de São Paulo, 1979.
VAINFAS, Ronaldo. A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil              colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.



[1] Texto originalmente publicado na Revista Rainha dos Apóstolos no. 954, abril de 2004.

[2] Professor, Mestre em História. Tem livro e artigos publicados sobre história e cultura indígena no Ceará colonial.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

                                                 Os Holandeses no Ceará

                                                                                           Paulo Sérgio Barros·

Para compreendermos o sentido da ocupação holandesa no Ceará no século XVII, é preciso que voltemos no tempo para sabermos um pouco da história da Europa, especificamente de Portugal e Espanha.

           Em 1568, dom Sebastião assumiu o trono português aos 14 anos de idade. Dez anos depois, ainda solteiro, morreu na batalha de Alcácer Quibir, contra os muçulmanos no norte da África. Como não deixou herdeiros, quem assumiu o trono foi seu tio-avô, o cardeal dom Henrique, que morreu pouco depois, em 1580. Sem herdeiros para o trono português, o rei da Espanha, Felipe II reivindicou para si o trono português argumentando que era casado com dona Maria, filha de Dom João III de Portugal, avô de dom Sebastião. 

            Com o apoio da nobreza, do alto clero e de parte da burguesia portuguesa, o exército espanhol invadiu Portugal e colocou no trono o novo rei. Em 1581, pelo Tratado de Tomar instaurava-se União Ibérica, governada por uma monarquia dual que reinaria sobre os dois países até 1640. 
            A União Ibérica teve repercussões importantes para o Brasil, colônia portuguesa na América. Uma delas foram as hostilizações que Portugal, agora sob domínio espanhol, passou a sofrer das potências européias inimigas da Espanha, notadamente a Holanda com quem a Espanha estava em guerra. 

            Os holandeses invadiram e ocuparam as regiões brasileiras produtoras de açúcar durante 24 anos (1630-1654), pois pretendiam continuar dominando o comércio mundial desse produto, domínio que a Espanha também pretendia. As primeiras tentativas holandesas foram na Bahia em 1624 e 1625. Expulsos da Bahia, voltaram sua atenção para Pernambuco, a maior e mais rica região produtora de açúcar do mundo. Estabelecendo-se em Pernambuco, os holandeses conquistaram vasta área que hoje corresponde parte dos estados de Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, parte do Litoral do Ceará e São Luís do Maranhão.

            Os senhores de engenho do Nordeste não reagiram à ocupação holandesa. Para eles o que interessava era ganhar dinheiro com a venda do açúcar, quer fosse para portugueses ou holandeses. Além do mais os holandeses fizeram empréstimos aos senhores de engenho para que eles reconstruíssem as propriedades destruídas pela guerra. Em 1637, Johann Mauritius van Nassau (Maurício de Nassau) foi nomeado governador das terras holandesas no Brasil. O Novo governador, além de manter a aliança com os senhores de engenho, trouxe na sua comitiva 46 artistas, cientistas, artífices e sábios para estudar e retratar a natureza do Brasil. Outro aspecto que marcou a administração de Nassau foi o embelezamento do Recife, a capital do Brasil holandês, através da construção de pontes e de obras sanitárias.

Os holandeses chegam ao Ceará

             Os holandeses fizeram duas investidas no sentido de dominar o Ceará. A primeira foi em 1637, comandada por Jorris Garstman que dominou a pequena guarnição portuguesa do Fortim de São Sebastião, tendo o apoio do chefe indígena Algodão. Nesse primeiro momento os holandeses visavam a conquista da ilha de São Luís do Maranhão e a conquista do Ceará serviria como um ponto de apoio para um futuro ataque ao Maranhão. Contudo, em primeiro lugar, eles objetivavam explorar as salinas do litoral cearense, para o qual usaram a mão –de obra indígena. 

              A aliança do chefe indígena com os holandeses não durou muito. A violação dos acordos, o uso da violência e exploração da força de trabalho, pôs os índios em estado de tensão, levando-os a destruir as fortificações construídas e assassinar Moris de Junge, o comandante que havia ficado no Ceará, e toda a sua guarnição no forte se São Sebastião, em 1644, o qual havia sido edificado na Barra do Ceará, em 1612, pelo primeiro colonizador português do Ceará, Martim Soares Moreno. 

               Até 1649 nem portugueses nem holandeses dominaram o Ceará. Neste ano Matias Beck retorna à região e restabelece o domínio holandês até 1654 quando foram expulsos do Brasil.
A vinda de Matias Beck era com o objetivo de procurar supostas minas de prata, talvez ouro, que seriam de grande importância para sanear as finanças do governo holandês no Brasil.

               Beck estabeleceu-se numa colina, próxima ao riacho Pajeú, onde hoje é o quartel general da 10ª Região Militar no centro de Fortaleza. Ali construiu o forte Schoonenboch, em 1649, nome dado em homenagem ao presidente do Alto Conselho Holandês no Brasil, Walter van Schoonenboch. 

     Na expedição de Beck havia especialistas, prateiros, mineiros e ourives e um religioso protestante para cristianizar os índios. As minas foram procuradas ao norte da serra de Maranguape e na Ibiapaba.  Somente no primeiro lugar encontrou-se prata. Contudo, em quantidade mínima.

               Em 1654 os portugueses reconquistam o Nordeste holandês e se reestabelecem no Ceará, rebatizando o forte holandês que passou a se chamar Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. No local aos poucos formar-se-ía um pequeno povoado, com o mesmo nome, que daria origem a de Fortaleza.

Os holandeses e os índios

As estratégias de contato dos holandeses com os índios eram semelhantes às práticas portuguesas. Uma dessas estratégias era manter alianças com os nativos e para isso utilizavam todos os meios. Os holandeses já usavam essa tática bem antes da ocupação do Nordeste brasileiro, já nos encontros costeiros com os índios, obtendo informações sobre a região e suas riquezas minerais, levando alguns à Holanda onde aprenderam a falar e escrever holandês e posteriormente, seriam de grande importância no ofício de intérpretes, intermediadores e outros serviços durante o domínio holandês. Pedro Poti e Antônio Paraupaba teriam sido dois índios que estudaram na Holanda com esse objetivo. Mesmo que o governo holandês reclamasse da resistência desses índios à cultura holandesa, acusando-os de comportamentos ''perversos e selvagens”.
 No governo de Maurício de Nassau havia a preocupação em atrair e conservar a amizade dos índios, reconhecendo a importância desses aliados para ao domínio do Nordeste. Na prática, os holandeses exploraram e escravizavam os índios, causando reações nativas, muitas vezes fatais.
O nível de abusos e exploração que portugueses e holandeses cometiam com os índios tinha a mesma intensidade. A liberdade que o governo holandês propagava para índios não surgia como um direito fundamental conquistado, mas como simples concessão, tolerância e benevolência dos dominantes. A liberdade indígena não existia. Se os holandeses foram mais tolerantes, se Maurício de Nassau foi um administrador liberal, concedendo direitos às minorias indígenas isso não os levou a se relacionar com os nativos diferentemente dos portugueses, pois viam-nos como seres inferiores e passíveis de serem utilizados ao bel prazer dos interesses econômicos.
No Ceará, o contato entre os nativos e os holandeses foi marcado pela cobiça, violência e exploração, similares às portuguesas. Do mesmo modo, foram as estratégias de acordos e amizades, muito importantes para os holandeses para moverem-se em uma região desconhecida e perigosa e até fatal, quando a cobiça e a violência prevaleciam sobre as relações amistosas com os nativos, ou quando as circunstâncias coloniais levavam os indígenas a romperem as alianças. Um exemplo nesse sentido é o caso do índio Algodão, cuja aldeia era “amiga” dos portugueses e que se tornou aliada dos holandeses em 1637, para tomar o forte português no Ceará.
Várias outras aldeias locais foram contatadas e aos seus chefes foram enviadas faquinhas de ferro, tesourinhas etc., visando atraí-los, torná-los aliados. De certa forma, os holandeses atraíram muitos, outros se aproximaram e isso foi habilmente manipulado pelos comandantes. Faltou-lhes, contudo, habilidade para manter as alianças. Em 1642, os indígenas da Ibiapaba, que até então tinham sido seus aliados, acompanhando-os na guerra do Maranhão contra os portugueses, insatisfeitos com os maus tratos e por não serem devidamente pagos pelo trabalho, destruíram as benfeitorias e assassinaram os soldados e o comandante holandeses.
O próprio governo holandês reconhecia mais tarde que a reação dos índios do Ceará devia-se ao desrespeito aos seus costumes, por não se cumprir os acordos e por não serem pagos pelos trabalhos realizados. Erros que eles tentaram corrigir mais tarde com a remessa de tecidos para pagar aos índios do Ceará que estavam na guarnição do Maranhão.
Gideon Moris de Jonge afirmava que os índios eram muito exagerados quando afirmavam que havia muito âmbar gris1 no Ceará.  Contudo, continuava a atraí-los o melhor que podia, dando-lhes comida, bebida e presentes. Apesar dos atrativos agrados, os índios voltavam sempre com o pretexto de que nada haviam encontrado. Acreditava Gideon, porém, que havia âmbar e que os índios o encontravam, contudo o levavam a outros lugares, visto que eles se movimentavam durante todo o dia, correndo acima e abaixo sem seu conhecimento e afirmavam que nada fizeram para os portugueses e que nada fariam para os holandeses, pois a terra lhes pertencia. Quanto ao trabalho nas roças, eles não o faziam sem o pagamento.
Em 1649, Matias Beck também usa índios da região para encontrar e explorar supostas minas de prata. Beck os atrai com presentes de biscoitos e vinhos. Assim como os portugueses, os holandeses nada faziam sem consultar os índios aliados, conhecedores da língua e costumes dos outros grupos cearenses, da geografia e dos produtos que economicamente interessavam aos colonizadores.

Alguns chefes indígenas aproximaram-se dos holandeses com satisfação e manifestando amizade, outros com receio. Todos movidos por seus interesses. A cobiça holandesa pelas supostas minas existentes no Ceará logo tornou-se muito clara para os nativos, motivo para barganhar ferramentas, comida, bebida e vestimentas: a exemplo do índio Caraya, o qual foi presenteado com sapatos, chapéu, camisa, meias e uma espada, em troca de informações sobre as minas; e do chefe João Algodão que depois de ter  reiterado sua amizade a Beck, mostrou-se insatisfeito com  os presentes  recebidos e achando-se mais importante, por ter o maior número de índios sob seu comando, recusou-os e exigiu do holandês um vestido vermelho ou escarlate, bordado a ouro ou prata.

Para Beck, a aproximação com os chefes indígenas significava segurança, informações e vantagens futuras. Os chefes, por sua vez, exigiam, barganhavam, escondiam, mentiam e chantageavam os holandeses com frequência, criando voluntariamente engodos e informações erradas para desorientá-los, trocando as informações sobre o local das minas.

Beck sabia que os nativos usavam a política “pacificadora” e o desejo de dar informações para conseguir presentes. Por isso, mantinha sua tolerância e paciência e acreditava em todas as informações dadas por muitos informantes, seguia todas as pistas apresentadas, dava todas os presentes exigidos pelos indígenas e aceitava inclusive a recusa dos índios em serem mensageiros ou a cultivarem roças para o sustento dos holandeses.

Quando os índios souberam da expulsão dos holandeses do Brasil, rapidamente manifestaram o que Beck temia. Apoderaram-se das roças, escravos e demais holandeses e assassinaram boa parte dos soldados. O restante da guarnição só foi salva graças aos canhões e o pequeno forte que a protegeu dos antes "amigos" índios, enquanto os portugueses chegavam e os salvariam.

O resultado dos conflitos entre portugueses e holandeses, em Pernambuco, foi o que determinou de que lado os índios ficariam, ou seja, para onde as circunstâncias coloniais lhes fossem mais favoráveis. De fato, eles temiam uma reação dos portugueses devido às alianças que haviam mantido até então com os holandeses. Assim, a necessidade de se ajustarem à nova situação, isto é, à reconquista portuguesa do Ceará se tornou necessária.

 

Referências


BARROS, Paulo Sérgio. Confrontos Invisíveis: Colonialismo e Resistência no Ceará. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Secult, 2002.
_______, Cultura e Resistência Indígena no Ceará Colonial (1603-1720). Monografia de Bacharelado.   Departamento de História, Universidade Federal do Ceará, 1992.
BUENO, Eduardo. Brasil: Uma História. São Paulo: Ática, 2003.
CÂMARA, José Aurélio. Aspectos do Domínio Holandês no Ceará. Revista do Instituto do Ceará, Tomo 70,
Editora do Instituto do Ceará, 1956.
MELLO. José Gonçalves de. Tempo dos Flamengos. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1947.





· Professor. Mestre em História pela Universidade Federal de Pernambuco.
1 Substância sólida, cinzenta, formada pelas concreções intestinais dos cachalotes. Tem cheiro semelhante ao do almiscar e é empregado em perfumaria (Encicopédia Globo).